“DEIXA QUE OS MORTOS
ENTERREM OS SEUS MORTOS”
“Outro dos discípulos disse a Jesus:
‘Senhor, permita-me que vá primeiro enterrar meu pai’. Mas Jesus lhe disse:
Segue-me, e deixa que os mortos enterrem os seus mortos”(Mt 8,21-22).
Os
mortos, no sentido literal, são aqueles
que perderam avida. Nesta meditação vocacional, no
entanto, veremos que Jesus está se referindo aos mortos espiritualmente,
aqueles que rejeitam ou não acolhem sua mensagem de vida. Este texto que
encontramos no evangelho de Mateus e seu paralelo em Lucas (Lc 9,59-60)
desperta muitas interrogações, especialmente nos jovens vocacionados. Alguns se
assustam diante da radicalidade das palavras de Jesus, que parece esquecer a
orientação do quarto mandamento da Lei de Deus: “honrateu pai e tua mãe”
(Ex 20,12). Mandamento que o próprio Jesus defenderá em controvérsia com os
escribas e fariseus sobre as tradições (cf. Mt 15,1-9).
O evangelista situa este episódio entre
as exigências para o seguimento de Jesus - que “não tem onde reclinar a cabeça”
(Mt 8,18-20) - e a cena da tempestade acalmada, oportunidade em que o Mestre
questionará a fé dos seus seguidores (8,23-27). Na sequência, Mateus apresenta
outras passagens que assinalam o florescimento do Reino (cf. 8,28 a 9,34) e
segue o discurso da missão, onde encontramos a perícope do Rogate (cf. 9,35 a
10,42).
“Permita-me que vá
primeiro...”
O discípulo anônimo está disposto a
seguir Jesus. Mas ele coloca uma condição natural e certamente necessária à sua
realidade: “Senhor, permita-me que vá primeiro enterrar meu pai”.
Interessante é observarque a apresentação da condição por partedo discípulo
começa com uma expressão defé: “Senhor”. O vocacionado reconhece
osenhorio de Jesus. Mas o evangelista nosquer dizer que a fé isolada, sem a
coragem decidida de seguir Jesus de forma incondicional, não é suficiente para
nos transformar em discípulos. Não basta reconhecer Jesus como “Senhor”.
O vocacionado precisa ter a coragem de renunciar, deixar e partir. Deste modo,
Jesus é mais exigente que o profeta Elias, o qual deixa Eliseu ir despedir-se
de seus pais antes de segui-lo (cf. 1Re 19,19-20).
A resposta de Jesus ao discípulo - “deixaque
os mortos enterrem os seus mortos” - é uma negativa a qualquer
condicionamento para segui-lo. Jesus rejeita a condição que o vocacionado
coloca, mesmo que ela aparentemente seja razoável. Mais adiante Mateus mostrará
Jesus aprofundando as exigências para que seus seguidores sejam dignos dele: “Quem
ama seu pai ou sua mãemais do que a mim não é digno de mim” (Mt 10,37). Ao
deixar sua família e seus bens, o discípulo experimentará também a realidade do
Mestre, que “não tem onde reclinar acabeça”, e mais tarde os enviará
para a missão junto à casa de Israel, revestidos de pobreza (cf. Mt 8,20;
10,1-15).
Quem são os mortos?
Literalmente, os “mortos” são
aqueles que perderam a vida. Mas Jesus está falando de modo figurado,
referindo-se aos mortos espiritualmente, os que rejeitam ou não acolhem sua
mensagem de vida. Os “mortos” são todos que não aceitam o testemunho e o
anúncio da chegada do reinado de Deus em Jesus (cf. Mt 4,17). No confronto com
os fariseus, Jesus mesmo dirá: “Ai devós, escribas e fariseus hipócritas!
Sois comosepulcros caiados: por fora parecem belos, maspor dentro estão cheios
de ossos de cadáverese de toda podridão” (Mt 23,27).
Segundo Mateus, colocar condições para
seguir Jesus é unir-se aos mortos e descuidar do projeto de vida. O evangelista
critica aquelas pessoas de sua comunidade que sempre dão desculpas para não
assumirem a radicalidade do evangelho. São vocacionados que querem ser
discípulos de Jesus, mas não se comprometem integralmente com a sua causa.
Colocam condições e procuram negociar os valores do Reino. Não são seguidores a
tempo completo e só assumem a parte que lhes interessa, de acordo com as suas
conveniências.
Esta mesma crítica podemos estender aos
animadores vocacionais que negociam com seus vocacionados. Com Jesus
aprendemosa fazer propostas claras e objetivas. Mas ele também nos ensina a não
aceitar nenhum tipo de condição da parte dos chamados.
Na época do Novo Testamento, sepultar os
mortos era um gesto humanitário e uma obrigação religiosa. Os pais desejavam
ser sepultados pelos próprios filhos (cf. Mt 15,4). Já no Antigo Testamento,
encontramos várias cenas onde sepultar os mortos era também uma atitude de
piedade (cf. Tb 12,13). Mas há outra perspectiva quando vamos para o ambiente
dos profetas. Tomemos, por exemplo, a passagem onde Deus proíbe o profeta de
lamentar a morte de sua mulher (cf. Ez 24,15). Ao profeta Jeremias dirá: “Não
entreis em uma casa onde há velório,não adianta chorar nem dar pêsames,pois
decidi retirar deste povo - oráculo do Senhor- a minha amizade, a simpatia e a
compaixão” (Jr 16,5). Neste contexto, compreendemos que os mortos
representam o povo infiel ao Deus da Aliança.
Deste modo, para o evangelista Mateus,
colocar condições para seguir Jesus é de alguma maneira “repetir” a
infidelidade de Israel, que tinha dificuldades em cumprir os preceitos da Lei
apesar das constantes observações dos profetas.
Mateus apresenta Jesus agindo de modo
semelhante ao jeito de Deus diantedas infidelidades do seu povo. O Mestre não
admite nenhum tipo de condição imposta pelo vocacionado. A oposição não estava
entre o espírito e a matéria ou entre o corpo e a alma,
mas entre a vida e a morte. Seus discípulos devem romper com as
tradições que favorecem o esquema de morte e impedem a missão de anunciar o
reinado da vida. O seguimento de Jesus exige ruptura com um sistema legalista,
preocupado com as seguranças deste mundo e respaldado por uma fé no deus
dosmortos. Mais adiante, respondendo aos saduceus, Jesus dirá que seu Pai “não
é oDeus dos mortos, mas dos vivos” (Mt 22,32).
Liberdade, renúncias e
rupturas
Jesus é o profeta da vida, que rejeita qualquer
situação de morte. Ele também não admite que seus discípulos “percam tempo” com
aqueles que estão mortos ou fechados à sua mensagem de vida. O Mestre espera que
os discípulos sejam capazes de romper com toda e qualquer situação de morte.
Mateus deixa claro, à sua comunidade e a cada vocacionado, que não é possível considerar-se
discípulo de Jesus e preservar os vínculos com os “mortos”, que rejeitam
a proposta do Reino.
A resposta de Jesus ao vocacionado manifesta
sua plena liberdade diante da Torá de Moisés e da tradição dos judeus. Ele
espera que seus vocacionados sejam pessoas capazes de fazer renúncias e
rupturas. Nos evangelhos, ser discípulo de Jesus não significa matricular-se na
escolade um determinado rabino, estudar e conhecer a Lei. O discípulo é chamado
a assimilar a Lei do amor e a servir com gratuidade, ajudando o
Mestre que ensina a “pegar a cruz” no fiel cumprimento da missão (cf. Mt
10,38).
Da renúncia ao discipulado
Renúncia e discipulado são realidades que
aparecem coligadas nos evangelhos. No entanto, observamos que Jesus não exige que
todos os seus seguidores deixem sua família e assumam a radicalidade desta
vocação específica. Esta exigência era apresentada somente a vocacionados
singulares. O Mestre não exigia de todos a mesma renúncia e um seguimento mais
radical pelos caminhos do Reino. Jesus anuncia o Reino a todos e espera uma
resposta de adesão à alternativa do evangelho. Ele pedia uma conversão que
implicasse mudança de mentalidade e atitudes. Mas, aos escolhidos ou chamados
de maneira particular, propõe uma radicalidade transparente e não admite que
seus discípulos imponham condições para segui-lo sem romper com os “mortos”.
Os vocacionados de Jesus são chamados a
seguir o Mestre com urgência, sem olhar para trás, com resposta generosa e assumindo
as inseguranças do caminho ao deixarem pai, mãe e todos os bens. O anúncio do
Reino não pode ser adiado por situações familiares. Os discípulos compreendem que
sua vocação e o seguimento de Jesus não se reduz a uma simples peregrinação atrás
do Mestre, nem devem ficar condicionados às conjunturas humanas. Jesus exige
uma adesão incondicional à sua pessoa e uma entrega imediata à missão e testemunhar
e anunciar o Reino. Fica claro que os vocacionados são pessoas livres, capazes
de renunciar e seguir sem olhar para trás. O animador vocacional não aceita
condições ou exigências que contradizem a gratuidade do chamado.
Pe. Gilson Luiz Maia, RCJ. Texto publicado na revista Rogate,
Ano XXIV - nº 237 - Novembro de 2005.
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